Algumas diretrizes de ação
Não existe uma solução única para enfrentar as fake news como projeto político. Como indicamos, iniciativas jornalísticas, incluindo as de checagem de informações, são importantes.
Cabe igualmente uma discussão sobre o que é possível fazer no plano regulatório, o que deve envolver abordagens inovadoras, como a proteção de dados pessoais utilizados para o direcionamento de propaganda política na internet.
Um papel central é o esforço de educação da população sobre como as fakes news são produzidas e mobilizam os preconceitos da população, e sobretudo atuando no sistema educativo, para formar uma geração de cidadãos com instrumentos emocionais e cognitivos que os protejam da manipulação, dentro e fora da internet.
Mas o que propor no plano da comunicação cotidiana? Como responder quando se recebe uma notícia falsa? A seguir elaboramos alguns insights de estratégias e uma proposta pratica, no sentido de re-sensibilizar a opinião pública, no terreno que a propaganda atua: dos valores, sentimentos e vieses cognitivos.
DIRETRIZES PARA UMA COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA
I. Disputar a meta-narrativa que está por trás do conjunto, não de cada uma das informações falsas
Uma primeira diretriz é de que, na comunicação cotidiana, o objetivo principal não é enfrentar as fake news individualmente, uma a uma. Uma avalanche de propaganda e memes leva a que o internauta, quando quer responder, caia no círculo desenhado no chão pelos produtores de notícias falsas. Mais ainda, o confronto leva a que as pessoas se fechem nas suas posições, inclusive levando a ofensas mútuas. No lugar de discutir o conteúdo, propomos que em resposta às fake news que as pessoas recebem cotidianamente, questionem o meta-discurso, isto é, não o conteúdo especifico de cada mensagem, mas indicar os valores que eles promovem e os vieses cognitivos que eles aproveitam. Se trata de interrogar o público, a partir de uma perspectiva democrática, sobre o mundo no qual ele quer viver, os valores que devem ser defendidos e a importância de manter sua autonomia e capacidade de reflexão.
II. Não vale tudo, pois a defesa “de (nosso) bom” não justifica cair no uso de fake news.
A segunda diretriz é que combater a propaganda da polarização destrutiva exige um compromisso democrático e ético, e não pode levar a usar qualquer “instrumento de combate”. Isto significa admitir que fake news podem ser encontradas em qualquer ponto do espectro político. A defesa do espaço democrático exige, em primeiro lugar, fortalecer os valores fundamentais, que permitem que se estabeleça uma base para o debate entre visões plurais. Sem ele, qualquer causa democrática não pode existir. Ou seja, a resposta as fake news não deve ter como objetivo defender uma posição política contrária, mas que as pessoas retomem sua autonomia reflexiva.
No contexto brasileiro atual, a principal tendência de polarização destrutiva se concentra hoje na extrema direita, pelo que nos concentramos mais em temas associados a esta tendência, o que não isenta que a proposta desenvolvida seja aplicada sobre qualquer tendência antidemocrática. O processo de polarização é relacional, e necessita ser visto como um problema que atinge todos. Conforme visto em estudos sobre o comportamento político do brasileiro, a vulnerabilidade de determinados setores à propaganda de polarização à direita pode ter raízes em comportamentos polarizantes e pouco compreensivos praticados por grupos progressistas, por exemplo.
III. Buscar o que nos une
Uma terceira diretriz, consequência da anterior, é que devemos trabalhar revertendo a maré da polarização destrutiva, inclusive enfrentando todas as identidades coletivas fechadas ao contraditório, impermeáveis ao confronto de ideias e de informações.
IV. Abrir mão de arrogância, lacração ou de tratar o outro como inimigo
Uma quarta diretriz para ação é voltada ao tom da resposta a ser dada, em qualquer nível da comunicação. Apesar de existência de identidades coletivas, elas não supõem a anulação da capacidade reflexiva individual. De fato, no interior dos integrantes dos mais diversos rótulos políticos existem indivíduos com posições diferenciadas. Quando rotulamos negamos a diversidade e a possibilidade de diálogo. Devemos nos proteger de rótulos, em particular nas relações pessoais. Rotular transforma a política em guerra, onde o objetivo é desumanizar e no limite destruir o inimigo. Para enfrentar o desafio não devemos tratar o outro como um inimigo, com posições definitivas. Pelo contrário, devemos lembrá-lo de valores de convivência, que formam parte de sua bagagem. Nosso objetivo é defender os valores que sustentam um espaço público plural.
V. Ninguém deve se portar como dono da Verdade
No confronto com as fake news é importante sempre lembrar a distinção entre verdade factual e a Verdade (isto é, um conjunto de crenças e formas de ver a realidade, dentro das quais os fatos são interpretados). Ela supõe que corresponde a cada indivíduo procurar sua Verdade, que não se reduz aos dados que pesquisadores acadêmicos e jornalistas divulgam depois de passar pelos filtros e checagens necessários. A única Verdade que nos une numa sociedade democrática é o respeito no espaço público da diversidade de opiniões fundadas em fatos e argumentos racionais. Boa parte das iniciativas que buscam confrontar as fake news, como indicamos, supõem o que está sendo atacado e está em jogo é (basicamente) a verdade factual. Na realidade, o centro do ataque não é sobre a realidade factual, mas de promoção de uma Verdade que nega a relevância dos fatos e o direito a pluralidade de ideias.
Devemos insistir na rejeição da mentira, no papel da curiosidade e da aprendizagem. Isto exige confrontar as pessoas com sua capacidade de reflexão para promover um debate informado entre visões plurais. O pressuposto deve ser que as pessoas têm o direito legitimo de interpretação dos fatos, mas não aceitam mentiras nem a destruição da convivência democrática.
VI. O lugar da conversa influencia: prefira ambientes onde o incentivo à performance de grupo é reduzido
As redes sociais abertas, como Twitter, Instagram, o YouTube ou o Facebook, incentivam a performance de grupo por meio de suas ferramentas de “retuite”, “curtidas” e etc. Estas “praças públicas” online se diferenciam das “salas de estar” dos grupos e das mensagens privadas. Isso precisa ser levado em conta na hora de realizar o enfrentamento da polarização destrutiva. É necessário pensar permanentemente no local que a conversa está se passando, dando preferências à ambientes nos quais o incentivo performático é reduzido. O uso dos grupos privados é utilizado para a disseminação de ataques e informações falsas justamente pelo motivo de que ele passa pela constituição de redes de confiança informais. Ele também ajuda a segmentar a audiência, pois suas informações não estarão disponíveis a quem não é do grupo. Estas características devem ser aproveitadas para desenvolver uma comunicação cívica e democrática.
VII. Se for desmentir, pesquise fontes que façam parte do mundo do interlocutor
Se a necessidade de desmentir for premente, por conta de ocorrer dano imediato devido à disseminação da (des)informação, por exemplo, uma das poucas diretrizes que podem funcionar é buscar fontes e vozes que sejam compatíveis com a audiência escolhida.
VIII. Ter claro o objetivo: Reconstruir o espaço público democrático
Identidades coletivas são parte da vida social. Todas as identidades, religiosas, nacionais, políticas ou esportivas, criam lealdades e valorizam as opiniões e a trajetória do próprio grupo, torcendo que tenham sucesso. Certamente não temos a mesma predisposição frente a outros grupos da que temos em relação ao nosso.
Na vida democrática as identidades coletivas não desaparecem, mas se cria um ambiente de comunidade de cidadãos livres, que participam do espaço público, sustentado nos valores de liberdade, convivência pacífica e respeito a pluralidade. O espaço público democrático, portanto, não elimina as identidades coletivas, mas elas passam a se sustentar em indivíduos que mantem sua autonomia reflexiva, e, portanto, sua lealdade a grupos não implica em perder a capacidade de se relacionar com outros argumentos. Neste sentido, o confronto com as fake news deve se basear na construção de uma identidade coletiva nacional democrática que aceita a diversidade de “tribos”, formadas por indivíduos, que compartilham um espaço público comum.