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O Desafio

Vivemos numa época na qual surgem novos espaços de comunicação virtual que não diferenciam entre o público e o privado. Formas inéditas de comunicação política influenciam cada vez mais as pessoas às margens dos meios tradicionais de comunicação – da “praça pública” do Facebook às “mensagens pessoais” dos grupos de WhatsApp. Nesses novos espaços, antigas barreiras de entrada caíram, favorecendo o surgimento de novos professionais e técnicas de comunicação.

Este cenário levou à reinvenção da propaganda política, que ganhou uma gama inédita de ferramentas. Bancos de dados permitem a construção de perfis psicossociais que identificam afinidades, preconceitos e temores dos internautas. Robôs enviam mensagens e conseguem ser cada vez mais capazes de interagir com humanos. Sofisticados programas possibilitam, até mesmo, falsificar imagens e falas. 


As novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) permitem que os autores das mensagens se ocultem sob perfis falsos, se escondam no anonimato e se protejam das consequências e da responsabilização de suas ações. Também possibilitam o mascaramento e a capilarização da propaganda política. Isso pode ser feito em um processo de “infiltração” de notícias externas à razão de existência de um grupo no WhatsApp (grupos de amigos, família, hobbies, e afinidades mais variadas), em sites aparentemente neutros ou em audiências de “influenciadores”.
 

A propagação dessas informações e notícias se realiza a partir da combinação de uma militância formada por núcleos duros e pela viralização por aqueles que embarcam em suas ideias e as difundem entre pessoas próximas. Os efeitos são extremamente potentes, pois atraem uma atenção difícil de se obter em redes sociais. 
 

A combinação deste cenário com os desenvolvimentos sociais e políticos da última década no Brasil teve um resultado destrutivo sobre o espaço público.  O sensacionalismo, a descontextualização, o exagero, a mentira, a deturpação dos fatos, a ofensa, o preconceito, a disseminação de medo, o sentimento de caos, desordem e imoralidade da vida pública, passaram a ocupar um lugar central na propaganda política, orientada por técnicas de guerra psicológica. Atuando de forma descentralizada, a propaganda política é projetada para atingir cirurgicamente cada tipo de audiência.


Isso acontece porque as pessoas absorvem as informações a partir de uma série de vieses cognitivos – sendo o mais comum o viés de confirmação, que é a tendência de se acreditar naquilo que já acreditamos ou pensamos. Esse viés é comumente aproveitado por propagandistas para passar informações falsas, recrudescendo preconceitos e se aproveitando de “atalhos” pré-estabelecidos.


Em contextos de plataformas abertas, esse processo de “infiltração” pode se dar por outras modalidades. São os casos de blogs ou páginas de Facebook criadas por propagandistas, dedicados inicialmente a temas neutros (como, por exemplo, notícias de um time de futebol ou qualquer grupo de afinidade), mas que, em épocas de agitação política, se transformam em plataformas para apoio a um candidato ou tendência política. 


Para lidar com esta nova realidade o jornalismo tradicional busca se reinventar, se dedicando mais à checagem da veracidade das informações.  É um esforço necessário, mas que enfrenta vários obstáculos. Em primeiro lugar, a quantidade de mensagens políticas é descomunal e a checagem de informações é um processo custoso, tanto em tempo como em recursos. Em segundo lugar, muitas pessoas que recebem a informação falsa e se identificam com seu conteúdo as disseminam sem checar sua veracidade. Em terceiro lugar, mesmo quando são pouco críveis ou com evidentes exageros, os conteúdos propagados não deixam de ter impacto no subconsciente do receptor. 


As “notícias falsas” não têm real conteúdo informativo. São memes, caricaturas, distorções ou informações isoladas do contexto, que têm como objetivo a demonização dos oponentes, pelo ataque sistemático. São peças de propaganda, por vezes disfarçadas de notícia, que buscam ativar um certo estado de espírito, de fechamento emocional e cognitivo em relação a qualquer informação que não confirme determinadas crenças. Esse processo produz uma polarização destrutiva do espaço público.


​Por uma comunicação que não caia em armadilhas


A vida democrática pressupõe discordância, confronto de ideias e propostas alternativas para a sociedade. A polarização política é parte da vida democrática – apenas na democracia, a crítica, a discordância e a denúncia da corrupção são possíveis. Mas o regime político democrático é inviabilizado quando o eventual opositor é considerado um inimigo a ser deslegitimado e destruído. A transformação da política democrática em uma guerra de propaganda se realiza pela supressão dos princípios de convivência e pela destruição do debate em torno de argumentos informados. A produção e disseminação sistemática de fake news deve ser entendida como um projeto político de destruição do espaço democrático, e não como simples acúmulo de mensagens isoladas. Seus produtores não estão preocupados com o conteúdo específico de cada mensagem, mas com um bombardeio constante que afeta tanto consciente como inconscientemente os receptores, e que transforma sentimentos e valores diminuindo a capacidade de reflexão crítica. 
 

Partindo-se do pressuposto de que as novas estratégias de propaganda política na internet contribuem para a desinformação/intoxicação do espaço público e da convivência democrática, devemos procurar novos caminhos para enfrentar seus efeitos deletérios. 


A maioria dos consumidores e propagadores das fake news não são fanáticos, mas acabam, pouco a pouco, intoxicados por um clima de polarização destrutiva. Como todos nós, eles convivem no seu interior com valores contraditórios. No lugar de entrar no jogo de negação do outro, devemos propor respostas que valorizem a reflexão e os valores de convivência e que questionem a polarização destrutiva.


Desta forma, no lugar de enfrentar as fake news entrando em seu jogo, exigindo desmentidos constantes que fazem com que a propaganda política esteja sempre na dianteira, propomos uma estratégia de não aceitar as provocações que nos levam ao território da polarização destrutiva. Isto exige recuperar nossa capacidade de manter o autocontrole e uma atitude de diálogo cívico.


Em suma, buscamos apontar abordagens de comunicação que, no lugar de “bater de frente” com a desinformação e a intoxicação do debate democrático, contornem as armadilhas da polarização destrutiva.


As estratégias de destruição do espaço público


Qual seria a estratégia de comunicação que leva a sociedade a uma polarização destrutiva? Como se destrói o ambiente democrático e o debate plural? Apontamos, aqui, a promoção de uma cultura de intolerância em relação a quem pensa diferente, transformando as identidades ideológicas em sistemas completamente fechados à argumentação contrária.

As principais estratégias das fake news como projeto político são:
 

  1. Demonizar todos aqueles que não são parte do grupo político considerado “inimigo”, seja do povo, da religião, da família ou da pátria. Estes viram alvo de ataques constantes, que os associam aos mais diversos vícios, crimes, defeitos de caráter e conspirações, muitas vezes a partir de informação descontextualizada sobre suas vidas, ou vinculando-os a pessoas de reputação duvidosa. O objetivo é destruir o respeito por essas pessoas e, por extensão, as instituições a que pertencem.
     

  2. Promover teorias conspiratórias. As teorias conspiratórias apresentam uma versão paranoica e diabólica do mundo. O conspirador é alguém que está por trás de uma minoria poderosa (ou de um indivíduo) que se opõe aos interesses da pátria, da família, da ordem, do povo, da nação ou da classe, à qual todos os opositores estão -- direta ou indiretamente -- associados. O papel das teorias conspiratórias é, sobretudo, o de procurar responsáveis externos pelos eventuais problemas que afetam o país e, assim, desviar a atenção das dificuldades do conjunto da sociedade e, em particular, dos erros de seus líderes. A “culpa” sempre é de outros. 
     

  3. Homogeneizar e empacotar todos os que discordam como pertencentes ao mesmo grupo, mesmo quando obviamente existem diferenças enormes entre eles. A homogeneização é feita rotulando-se todos os que discordam como sendo versões da mesma tribo (“comunistas”, “fascistas”, “feministas”), que, por sua vez, é caricaturada. A homogeneização do “inimigo” ajuda a criar um sentimento de unidade e comunidade entre os que a ele se opõem. O “inimigo comum” permite canalizar os mais diversos ressentimentos, preconceitos e frustrações de grupos muito variados. Projetando no “inimigo” a responsabilidade pelos mais diversos mal-estares sociais, simplificam-se problemas complexos que devem ser enfrentados pela sociedade. Tudo se resume a culpar o “outro” e acreditar cegamente em um líder.
     

  4. Mobilizar o medo frente a possíveis transformações sociais, criando um sentimento de caos. Idealiza-se o passado, quando, na verdade, apesar dos desafios, contamos hoje com uma qualidade de vida superior, com maior consciência dos direitos e respeito da dignidade de cada cidadão do que no passado.
     

  5. Construir um “novo normal”, testando os limites do sistema jurídico e moral. Neste "novo normal" é permitido ofender, mentir e difamar sistematicamente. É um processo de destruição das normas de civilidade e respeito, que tornam aceitável a agressão constante como forma de ação política. As fake news, mas também as declarações dos líderes políticos autoritários, procuram alargar constantemente os limites do que é civicamente aceitável no debate público. Quando por vezes se força demais e há uma reação pública, é comum que façam um recuo tático, justificando, por exemplo, que a declaração era uma piada, que o conteúdo foi retirado do contexto, ou que foi uma fala mal compreendida.
      

  6. Deslocar o foco. A técnica, retirada da retórica, é usada quando o líder enfrenta um problema, erro ou escândalo, e procura mudar o foco do debate, seja “noticiando” alguma mensagem sensacionalista ou explicando os acontecimentos como se fossem uma conspiração. 


Algumas diretrizes de ação


Não existe uma solução única para enfrentar a utilização de fake news como projeto político. Como indicamos, as iniciativas jornalísticas, incluindo-se as de checagem de informações, são um caminho importante. 


Cabe igualmente uma discussão sobre o que é possível fazer no plano regulatório, o que deve envolver abordagens inovadoras, como a proteção de dados pessoais utilizados para o direcionamento de propaganda política na internet.


Outro papel central é o esforço de educar a população sobre como as fake news são produzidas e podem mobilizar os preconceitos. Deve-se atuar no sistema educativo para formar uma geração de cidadãos com instrumentos emocionais e cognitivos que os protejam da manipulação, dentro e fora da internet. 


Mas o que propor no plano da comunicação cotidiana? Como responder quando se recebe uma notícia falsa? A seguir elaboramos alguns insights de estratégias e uma proposta prática, no sentido de ressensibilizar a opinião pública, no terreno em que a propaganda atua: dos valores, sentimentos e vieses cognitivos. 


DIRETRIZES PARA UMA COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA


I. Disputar a meta-narrativa que está por trás do conjunto, não de cada uma das informações falsas


Uma primeira diretriz é que, na comunicação cotidiana, o objetivo principal não é enfrentar as fake news individualmente, uma a uma. Uma avalanche de propaganda e memes leva o internauta, quando quer responder, a cair na armadilha desenhada pelos produtores das notícias falsas. Mais ainda, o confronto pode levar as pessoas a se fecharem nas suas posições, e inclusive provocar ofensas mútuas. No lugar de discutir o conteúdo, propomos que, em resposta às fake news, as pessoas questionem o meta-discurso, isto é, não o conteúdo específico de cada mensagem, mas sim os valores que elas promovem e os vieses cognitivos que de que se aproveitam.  É preciso interrogar quem nos envia fake news, a partir de uma perspectiva democrática, sobre o mundo em que pretende viver, os valores que devem ser defendidos e a importância de cada pessoa manter sua autonomia e capacidade de reflexão. 


II. Não vale tudo, pois a defesa daquilo que acreditamos ser o correto não justifica cair no uso de fake news 


A segunda diretriz é que combater a propaganda da polarização destrutiva exige um compromisso democrático e ético. Não devemos usar qualquer “instrumento de combate”. Isto significaria admitir que as fake news podem ser encontradas em qualquer ponto do espectro político.  A defesa do espaço democrático exige, em primeiro lugar, o fortalecimento dos valores fundamentais, que permitem que se estabeleça uma base para o debate entre visões plurais. Sem ele, qualquer causa democrática não pode existir. Ou seja, a resposta às fake news não deve ter como objetivo final defender uma posição política contrária, mas sim fomentar nas pessoas a autonomia reflexiva. 

No contexto brasileiro atual, a principal tendência de polarização destrutiva se encontra na extrema direita, portanto nos concentramos mais em temas associados a esta tendência, porém a proposta desenvolvida pode ser aplicada em relação a qualquer tendência antidemocrática. O processo de polarização é relacional, e deve ser visto como um problema que atinge a todos. 


III. Buscar o que nos une


Uma terceira diretriz, consequência da anterior, é que devemos buscar um terreno comum em torno de valores fundamentais de convivência e tolerância para reverter a maré da polarização destrutiva, questionando todas as identidades coletivas fechadas ao contraditório, impermeáveis ao confronto de ideias e de informações.  

IV. Abrir mão de arrogância, da "lacração" ou de tratar o outro como inimigo

Uma quarta diretriz diz respeito ao tom da resposta a ser dada, em qualquer nível da comunicação. Apesar da existência de identidades coletivas, elas não supõem a anulação da capacidade reflexiva individual. De fato, sob os  mais diversos rótulos políticos existem indivíduos com posições diferenciadas. Ao rotular, negamos a diversidade e a possibilidade de diálogo. Deveríamos nos proteger de rótulos, em particular nas relações pessoais. Rotular pode transformar a política em uma guerra com o objetivo de desumanizar e, no limite, destruir o inimigo. Não devemos tratar o outro como um inimigo e assumir, posições definitivas. Pelo contrário, devemos lembrá-lo de valores de convivência, que formam parte de sua bagagem. Nosso objetivo é, portanto, defender os valores que sustentam um espaço público plural. 


V. Ninguém deveria se portar como dono da Verdade 


No confronto com as fake news é importante sempre lembrar a distinção entre a verdade factual e a Verdade. Esta última consiste num conjunto de crenças e formas de ver a realidade, com base no qual os fatos são interpretados. Cada indivíduo tem o direito à sua interpretação da realidade, desde que não negue a verdade factual apurada por cientistas e jornalistas submetidos aos respectivos mecanismos de verificação de suas profissões. A única Verdade que nos une numa sociedade democrática é o respeito, no espaço público, à diversidade de opiniões fundadas em fatos verificáveis e argumentos racionais. Boa parte das iniciativas que busca confrontar as fake news, como indicamos, supõe que o que está sendo atacado e está em jogo é basicamente a verdade factual. Na realidade, o centro do ataque não é a realidade factual, mas sim a promoção de uma Verdade que nega a relevância dos fatos e o direito à pluralidade de ideias. 

Devemos insistir na rejeição da mentira, e na importância do papel da curiosidade e da aprendizagem. Isto exige despertar nas pessoas a sua capacidade de reflexão, para então promover um debate informado entre visões plurais. O pressuposto deve ser que as pessoas têm o direito legítimo de interpretação dos fatos, mas não deveriam aceitar mentiras e tampouco  a destruição da convivência democrática.  


VI. O lugar da conversa: prefira ambientes onde o incentivo a performance de grupo é reduzido


As redes sociais abertas, como Twitter, Instagram, o YouTube ou o Facebook, incentivam a performance de grupo por meio de suas ferramentas de “retuite”, “curtidas” etc. Estas “praças públicas” online se diferenciam das “salas de estar” dos grupos e das mensagens privadas. Isso precisa ser levado em consideração no momento de lidar com a polarização destrutiva. É necessário pensar sempre no local em que a conversa está se passando, dando preferência a ambientes nos quais o incentivo performático é reduzido. Os grupos privados são utilizados para a disseminação de ataques e informações falsas justamente porque forma parte de redes de confiança informais. Eles também ajudam a segmentar a audiência, pois as informações que neles circulam não estarão disponíveis a quem não é do grupo. Essas características devem ser aproveitadas para desenvolver uma comunicação cívica e democrática.


VII. Se for desmentir, pesquise fontes que façam parte do mundo de referências do interlocutor


Se a necessidade de desmentir for premente, por conta de ocorrer, por exemplo, um dano imediato devido a disseminação da (des)informação, uma das diretrizes que podem funcionar é buscar fontes e vozes que sejam compatíveis com a audiência escolhida.


VIII. Ter claro o objetivo: reconstruir o espaço público democrático


Identidades coletivas são parte da vida social. Todas as identidades, sejam elas religiosas, nacionais, políticas ou esportivas, criam lealdades que valorizam as opiniões e a trajetória do próprio grupo. Essa não é uma predisposição comum quando somos confrontados com grupos diferentes dos nossos. Na vida democrática as identidades coletivas não desaparecem, mas se cria um ambiente de comunidade de cidadãos livres, que participam do espaço público, sustentado nos valores de liberdade, convivência pacífica e respeito a pluralidade. O espaço público democrático não elimina as identidades coletivas, mas elas passam a se sustentar em indivíduos que mantêm sua autonomia reflexiva, e, portanto, sua lealdade a grupos não implica a perda da capacidade de respeitar e compreender outros pontos de vista. Neste sentido, o confronto com as fake news deve se basear na construção de uma identidade coletiva nacional democrática, que aceita a diversidade de “tribos”, formadas por indivíduos, que compartilham um espaço público comum.

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